segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Dr. Boêmia: De Karl Marx a Zé Keti: as "barricadas" e a boemia musical

De Karl Marx a Zé Keti: as "barricadas" e a boemia musical
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Luiz Manhães

É no contexto das insurreições na França de meados do século XIX que a boemia aparece nos escritos de Karl Marx:

"Com o processo de formação das conspirações proletárias, surgiu aí a necessidade da divisão do trabalho: os seus participantes se dividiam em conspiradores ocasionais, conspirateurs d'occasion, ou seja, trabalhadores que só praticavam a conjura ao lado de suas demais atividades, só assistiam aos encontros e se mantinham de prontidão para comparecerem, ao comando do chefe, no local de reunião; e em conspiradores profissionais, que dedicavam toda a sua atividade à insurreição e que viviam dela. (...) As circunstâncias da vida dessa classe condicionam já de antemão todo o seu caráter. (...) A sua incerta existência, individualmente dependendo mais do acaso do que de sua atividade, a sua vida irregular, cujas únicas estações fixas são as tabernas dos vendedores de vinho – os rendez-vous dos insurrectos -, seus inevitáveis relacionamentos com tudo quanto é gente equívoca, classificam esses homens naquele círculo de vida que em Paris se chama de la bohème".
(in Walter Benjamin, 1991, p.44-45, editora Ática)

Sobre esses conspiradores, diz Marx que eles são "aqueles que levantam e comandam as primeiras barricadas". Sendo um dos traços permanentes do movimento conspiratório, mais de 4.000 barricadas são erguidas na cidade de Paris em 1848: é que os trabalhadores preferiam a luta no próprio bairro à batalha em campo aberto. Victor Hugo, em Os miseráveis, se refere a essa rede de barricadas, ocultando nas sombras seus ocupantes:

"Um olho que, lá de cima, tivesse olhado para essas sombras amontoadas talvez houvesse topado em diversos pontos com aparições pouco claras, permitindo reconhecer contornos irregulares, a correrem arbitrariamente, perfis de curiosas construções. Nessas ruínas movia-se algo que lembrava luzes. Nesses lugares é que estavam as barricadas".

Desde então, uma das maneiras de praticar a resistência política ou cultural herda, enquanto metáfora, esses mágicos paralelepípedos que se erguem como fortalezas para o alto, como recorda Baudelaire. Para nós, do fundo de quintal ao samba de mesa, é nos bares e botequins de alma carioca que tecemos nossas barricadas musicais.

A relação bar-boêmio é atávica, não muda, tem raízes que marcam uma profunda relação de amizade entre o carioca e o seu canto preferido. A trajetória musical de um grande sambista foi marcada por esta relação. José Flores de Jesus, o Zé Keti, nasceu no bairro de Inhaúma, RJ, em 16 de setembro de 1921. Aos quatro anos de idade, tirava as primeiras notas de uma flauta de folha-de-flandres tecida por suas próprias mãos. Sua mãe, dona Leonor, depois que seu pai morreu, foi trabalhar na fábrica de tecidos em Bangu. Mais ou menos nessa época, receberia o apelido que o acompanharia vida afora. É que a mãe, preocupada em deixá-lo na casa dos outros, todos os dias perguntava para a vizinha: "Como é, o Zé ficou quietinho?" Não demora muito para que a molecada passasse a chamá-lo de Zé Quietinho, Zé Quieto, Zé Queti...Só muito mais tarde, quando decidiu adotar um nome na vida artística, o compositor resolveria escrever com k. "Era uma época em que a letra k no começo do nome estava muito na moda, tinha Kennedy, Kubitschek, Krushev. Estava dando sorte e o Zé passou a escrever o dele com k também", lembrava Dona Leonor.

Em 1939 passou a desfilar na Ala de Compositores da Portela e freqüentava as rodas do Café Nice, que já era o mais importante ponto de encontro dos artistas do Rio de Janeiro. Como todos os sambistas primitivos que o influenciaram – entre eles, Cartola e Nélson Cavaquinho - , Zé Keti compõe pela intuição, melodia e letra nascendo ao mesmo tempo. Eram anotadas em qualquer lugar e depois, com calma, consertadas no que fosse preciso. E, para ele, esse instante de criação era sagrado. Quando a música surgia em sua mente, tudo o mais perdia a importância, até mesmo aquela conversa no bar que provocara aquele estalo musical.

No início dos anos sessenta, entre 1963 e 1965, uma casa velha na rua da Carioca número 53 virou o "Zicartola". O sobrado era um local de resistência aos tempos sóbrios e sombrios que se anunciavam com o golpe militar de abril de 1964, uma de nossas barricadas da boemia musical. Era comandado por dona Zica na cozinha e por Cartola no violão, e Zé Keti lembra: "Fui convidado para ser diretor artístico da casa. Por lá passaram Ataulfo Alves, Aracy de Almeida, Elizeth Cardoso e Clementina de Jesus, que começou sua carreira lá, levada pelo Hermínio Belo de Carvalho que a descobriu numa festa da Igreja da Glória, já sessentona. Foi lá, ainda, que surgiram Élton Medeiros e Paulinho da Viola, descobertos por mim. O Paulinho ainda era o Paulo César, aí eu lhe dei o nome de Paulinho da Viola". Também seria no Zicartola que conheceria Nara Leão, que se tornaria intérprete do compositor logo em seu primeiro disco solo (1964), gravando Diz que fui por aí.


DIZ QUE FUI POR AÍ (Zé Keti)

Se alguém perguntar por mim
Diz que fui por aí
Levando um violão debaixo do braço
Em qualquer esquina eu paro
Em qualquer botequim eu entro
E se houver motivo
É mais um samba que eu faço
Se quiserem saber se eu volto
Diga que sim
Mas só depois que a saudade se afastar de mim
Tenho um violão para me acompanhar
Tenho muitos amigos eu sou popular
Tenho a madrugada como companheira
A saudade me dói em meu peito me rói
Eu estou na cidade eu estou na favela
Eu estou por aí sempre pensando nela
Se alguém perguntar por mim...

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Quem é Luiz Carlos Manhães?


Professor universitário da UFF, Luiz Carlos Manhães realiza um curso regular: "redes educativas na boemia musical". Sugerindo o nome da coluna como: "boemia musical" ou "Os Boêmios", em homenagem a Anacleto de Medeiros, autor da música gravada pelo Cordão do Boitatá. Entretanto, a coluna ficou como Dr. Boêmia em homenagem ao doutor especializado em boêmia. Viva!

2 comentários:

Rod disse...

ótima e sempre em tempo essa lembrança de Zé Keti. Um grande poeta num texto bem afiado (igualmente afinado). Rod Britto.

Anônimo disse...

Viva as barricadas de nossas existências pois não é somente com lutas pelo poder político que conseguiremos mudar estes mundo mas , também, com muita música boa, poesia e alegria de se lutar por aquilo que nos parece justo e sensato. Viva a Boêmia etílica, musical , revolucionária, um brinde a tu Dr. Boêmia.

Rei da Boêmia.