terça-feira, 30 de setembro de 2008

Dr. Boêmia: Do cavaquinho ao violão: um andarilho na boemia musical...

Do cavaquinho ao violão: um andarilho na boemia musical... ___________________________________________________
Luiz Manhães

Nélson Antônio da Silva nasceu em 29 de outubro de 1911, no Rio de Janeiro, de família de trabalhadores pobres: a mãe, dona de casa que defendia alguns trocados como lavadeira; o pai, músico, tocador de tuba, na Banda da Polícia Militar. Já em sua infância, por força de constantes mudanças de endereço a que era obrigada a família para fugir dos aumentos de aluguéis, conheceu diversos bairros, morando na rua Mariz e Barros, entre a Tijuca e a Praça da Bandeira; na Lapa, no Centro; no subúrbio de Ricardo de Albuquerque, bairro da zona oeste, na linha da estrada de ferro; e na Gávea, zona sul carioca, já adolescente. Foi ali, naquele bairro de grande concentração operária, na época, que se aproximou mais estreitamente da música, ouvindo e acompanhando os conjuntos de música que por lá se apresentavam, principalmente "chorões", reunindo flauta, cavaquinho e violão nas patuscadas e comezainas d'então... Seu primeiro instrumento musical foi o cavaquinho que inspirou seu apelido: ainda criança, construiu um, bem simples, com uma caixa de charutos e cordas de arame, para acompanhar um tio que tocava violino, e que ia aos domingos à sua casa. Mais tarde, ganharia um cavaquinho de verdade, presente de um jardineiro português condoído por vê-lo tocar nos instrumentos dos outros. Instrução, o menino teve pouca: cumpriu apenas até o terceiro ano primário, quando morava na Lapa, próximo do quartel onde o pai trabalhava, na rua Evaristo da Veiga. Saiu da escola para trabalhar, ajudando no sustento da família.

José Novaes, em seu livro "Nélson Cavaquinho: Luto e Melancolia na MPB", nos conta uma história interessante sobre a produção na boemia. A situação é descrita por Guilherme de Brito, em entrevista gravada: vinha ele de uma festa em Niterói, tarde da noite. Na Praça XV, ao lado da Estação das Barcas, senta no bar, tomando uma cerveja, e faz a letra da primeira parte. Entrega a Nélson Cavaquinho, que faz a segunda parte da letra e põe a música.


A FLOR E O ESPINHO

(Nélson Cavaquinho/Guilherme de Brito/Alcides Caminha)


Tire o seu sorriso do caminho
Que eu quero passar com a minha dor

Hoje pra você eu sou espinho

Espinho não machuca a flor

Eu só errei quando juntei minh'alma à sua

O sol não pode viver perto da lua

É no espelho que eu vejo a minha mágoa

A minha dor e os meus olhos rasos d'água

Eu na sua vida já fui uma flor

Hoje sou espinho em seu amor



Aos 21 anos, Nélson Cavaquinho casa-se com Alice, mas continua o boêmio que já era. Após o nascimento de seu terceiro filho, os amigos de seu pai arrumam-lhe um emprego. Homem casado, pai de três filhos, com responsabilidades, não podia levar a vida que levava. Nélson Antônio da Silva, já conhecido como Nélson (do) Cavaquinho, vai ser cavalariano da Força Pública. Sua função era patrulhar os botecos dos morros, o que, é claro, unia o útil ao agradável, para ele. Deixava o cavalo amarrado diante dos bares e entrava para puxar um samba e conhecer os bambas: Cartola, Carlos Cachaça e Zé com Fome (o futuro Zé da Zilda). Boa parte de sua vida de cavalariano da PM passou na prisão militar: não se importava, parece, pois aproveitava para compor músicas. Depois de sete anos de casamento, sua mulher morre. Nélson desliga-se da Força Pública e vai viver de e para a música. Aí, solidifica-se uma história, a do Nélson Cavaquinho boêmio, "irresponsável", cantor da perda e da morte, da melancolia e da dor.

DEGRAUS DA VIDA

(Nélson Cavaquinho/César Brasil/Antonio Braga)


Sei que estou
No último degrau da vida, meu amor

Já estou envelhecido, acabado
Por isso muito eu tenho chorado

Eu não posso esquecer o meu passado

Foram-se os meus vinte anos de idade

Já vai muito longe a minha mocidade

Sinto uma lágrima rolar sobre o meu rosto

É tão grande o meu desgosto


A aproximação de Nélson Cavaquinho à categoria de malandragem, na análise de José Novaes, é bem nítida, por dois ângulos: o homem, boêmio de todas as madrugadas, e a obra, de uma beleza e luminosidade que escancaram os mais depressivos e escondidos dos sentimentos humanos
. A "filosofia desencantada" incorporada num homem "sem lei e sem felicidade", a dissimulação "para aparentar felicidade" estão presentes na obra de Nélson Cavaquinho e, de modo insistente, a melancolia e a dor ali fazem sua morada.

Era notória sua capacidade de se perder (para os outros) na cidade do Rio; conhecia e freqüentava as mais estranhas bibocas desconhecidas nos subúrbios, além dos pontos mais conhecidos no centro – como o Bar Amarelinho – ou na Zona Sul, que freqüentou durante algum tempo, assiduamente, por conta das apresentações no Teatro Opinião. Sua resistência à fadiga, ao sono, à fome, era fantástica: podia passar dois, três, quatro dias perambulando pela cidade, dormindo aqui e ali, algumas poucas horas, às vezes simplesmente deitando a cabeça nos braços cruzados em cima da mesa do bar, por meia ou uma hora e logo a levantando, pedindo uma cerveja, reempunhando o violão para continuar. Ao voltar para casa, após uma dessas prolongadas boêmias, ficava "de molho" outros tantos dias, só comendo e dormindo – comidas pesadas, como feijoadas, de que gostava muito -, preparando-se para a próxima saída.

Muitas vezes, a roda era de amigos e conhecidos; mas, mesmo que boa parte ou todos fossem desconhecidos, Nélson fazia questão de "dar as cartas". Dominava o ambiente, contava histórias e "causos", cantava suas músicas, enfim: não dava lugar para ninguém. Quando sentia que estava deixando de ser o centro das atenções, dava um jeito de recuperar o lugar perdido: pegava o violão e começava a cantar uma música, por exemplo. Era muito vaidoso; trazia sempre um lenço, conta Beth Carvalho, muito perfumado, que tirava às vezes do bolso e ajeitava, para que sentissem o odor que dele exalava. Era muito ciente de sua obra, e da importância e lugar dela na música popular brasileira: só tocava suas músicas, embora conhecesse as de outros compositores, mesmo novos. Talvez aí houvesse o objetivo de divulgá-las, mas também uma maneira de demonstrar que, mesmo bebendo todas, era capaz de mostrar sua arte.


MINHAS MADRUGADAS

(Candeia e Paulinho da Viola)


Vou pelas minhas madrugadas a cantar
Esquecer o que passou

Trago a face marcada

Cada ruga no meu rosto

Simboliza um desgosto

Quero encontrar em vão o que perdi

Só resta saudade, não tenho paz

E a mocidade que não volta mais

Quantos lábios beijei

Quantas mãos afaguei

Só restou saudade no meu coração

Hoje fitando o espelho
Eu vi meus olhos vermelhos
Compreendi que a vida que eu

Vivi foi ilusão...Vou pelas minhas madrugadas a cantar...



Nélson Cavaquinho, poeta sabedor de que as coisas estão no mundo, vivia em total afastamento quanto aos esquemas organizados de produção, divulgação e garantia de propriedade das músicas. Quantos sambas Nélson compôs? José Novaes arrisca um número, "perto de 800, dos quais grande parte está perdida, ou esquecida, ou não foi gravada, ou..." Novaes ainda pergunta: quantas de suas músicas têm como autores de letras os oportunistas que sempre cercam um grande musico, aproveitando-se de sua humildade, inexperiência ou necessidade? O artista sabe disso e não se importa, como ele mesmo diz:

"Não estou reclamando. Era coisa da época, e alguns desses meus 'parceiros' me ajudaram muito nos momentos difíceis e eu dei parceria como forma de retribuir o que haviam feito. César Brasil, por exemplo era gerente de um hotel onde, sempre que estava sem dinheiro, eu dormia sem pagar nada. Naquela época também não existia direito autoral e a música rendia o que o parceiro pagava".

Considerá-lo, no entanto, vítima dos aproveitadores, nem sempre é certo; em certas ocasiões Nélson levou a melhor. Como da vez em que o "parceiro", no dia seguinte, reclamou que esquecera a música que comprara, pois estava muito embriagado na ocasião em que Nélson a compôs, na sua frente, à mesa de um bar, e o compositor respondeu: "Azar o seu, compadre, eu também esqueci tudo" (e, com o dinheiro que lhe rendera a venda, Nélson comeu durante uma semana no bar do China). Ou outra, que nos conta José Novaes:

"Nilton Amaral, também boêmio e compositor, conta que, certa madrugada, fizeram samba em parceria. Alguns dias depois, quando foi à editora para assinar o contrato, já era o 15º co-autor. Nélson havia vendido quatorze parcerias da mesma música"


14 ANOS
(Paulinho da Viola)


Tinha eu catorze anos de idade
Quando meu pai me chamou
Perguntou-me se eu queria
Estudar filosofia, medicina

Ou engenharia

Tinha eu que ser doutor

Mas a minha aspiração

Era ter um violão

Para me tornar sambista

Ele então me aconselhou:

Sambista não tem valor

Nesta terra de doutor

E, seu doutor,

O meu pai tinha razão

Vejo um samba ser vendido

E o sambista esquecido
O seu verdadeiro autor

Eu estou necessitado

Mas meu samba encabulado

Eu não vendo não senhor...


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Quem é Luiz Carlos Manhães?


Professor universitário da UFF, Luiz Carlos Manhães realiza um curso regular: "redes educativas na boemia musical". Sugerindo o nome da coluna como: "boemia musical" ou "Os Boêmios", em homenagem a Anacleto de Medeiros, autor da música gravada pelo Cordão do Boitatá. Entretanto, a coluna ficou como Dr. Boêmia em homenagem ao doutor especializado em boêmia. Viva!

Um comentário:

Anônimo disse...

Manhães:
É uma delícia ler sua escrita.
O texto me fez lembrar um certo show político em Santa Tereza numa pracinha. Ao final fomo eu e Edu Cantanhede levar em casa Nelson Cavaquinho, Guilherme de Brito e um terceiro que parece em minha lembranças ser o Candeia - só que era um fusca e onde estaria a cadeira de rodas? Não lembro...
Bjs
Cristina