terça-feira, 21 de outubro de 2008

Dr. Boêmia: Boemia e malandragem na música brasileira

Boemia e malandragem na música brasileira _________________________________________

Luiz Manhães
"Se a situação tá ruim pra malandro,
Imagina pra otário"
(fala MANGUEIRA!!!)

Os fios e nós que entrelaçam malandragem e música popular brasileira, especialmente o samba, até no momento da formação e cristalização dessa maneira de ser, criação e resistência artística das classes subalternas no Brasil, são destacados por vários pesquisadores. O tema da malandragem se desenvolve mais intensamente na música popular brasileira nas décadas de 20,30 e 40 do século XX. O brigão, que não se esquivava de uma briga; o homem mulherengo, de chapéu panamá, de sapato cara-de-gato; aquele outro, navalhista, de lenço no pescoço e bom na capoeira; eis aí o malandro...

Claudia Matos, em seu livro "Acertei no milhar", afirma que o malandro é um ser da fronteira, da margem, e completa:

"Seus domínios geográficos não são nem o morro nem os bairros de classe média, mas os lugares de passagem como a Lapa e o Estácio. Ele não se pode classificar nem como operário bem comportado nem como criminoso comum: não é honesto mas também não é ladrão, é malandro. Sua mobilidade é permanente, dela depende para escapar, ainda que passageiramente,às pressões do sistema."

Ao voltar da Europa em 1933, Oswald de Andrade teve fina perspicácia ao afirmar que, no Brasil, o contrário do burguês não era o proletário, mas o boêmio. Ironia à parte, ele captou um aspecto essencial da ideologia da cultura brasileira por ocasião do desenvolvimento da industrialização sob hegemonia dos setores agrários exportadores: assim como no século XIX não havia lugar para o exercício de direitos, tecendo-se a vida cotidiana principalmente com a categoria do favor, no começo do século XX não havia ainda espaço, salvo entre os militantes anarquistas, para a idéia de conflito entre capital e trabalho.

O fascínio pela malandragem na nossa música popular surge numa fase em que o conflito entre capital e trabalho ainda não recobria todo o espaço social no Brasil, havendo, portanto, uma brecha a ser ocupada pela metáfora da malandragem. A ideologia do culto ao trabalho vai, a partir de 1937, com o governo ditatorial de Getúlio Vargas, substituindo o legendário e prestigiado malandro dos anos anteriores pelo ambíguo "malandro regenerado". Alberto Moby, em seu livro "Sinal Fechado", nos conta que o samba "O bonde de São Januário", de Wilson Batista e Ataulfo Alves, e grande sucesso do carnaval de 1941, tinha a seguinte letra:

Quem trabalha não tem razão
Eu digo e não tenho medo de errar

O Bonde São Januário
Leva mais um sócio otário

Só eu que não vou trabalhar.


Moby nos explica que, "a pedido do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda, criado em 1939) a expressão sócio otário foi substituída por operário e só eu que não vou... por sou eu quem vou.... Quem trabalha passa a ser quem tem razão e a composição, de elogio à malandragem, passa a constituir-se no seu reverso, o elogio do trabalho".

O BONDE DE SÃO JANUÁRIO
(Wilson Batista/Ataulfo Alves)

Quem trabalha é que tem razão
Eu digo e não tenho medo de errar:

O bonde São Januário

Leva mais um operário

Sou eu que vou trabalhar

Antigamente eu não tinha juízo
Mas hoje eu penso melhor no futuro
Graças a Deus sou feliz

Vivo muito bem

A boemia não dá camisa

A ninguém. Passe bem!


Wilson Batista nasceu em Campos (RJ), em 1913, e ainda menino participou da Lira de Apolo, banda organizada por seu tio, o maestro Ovídio Batista. Em sua cidade natal também fez parte do Bando Corbeille de Flores, para o qual fez suas primeiras músicas, antes de vir para o Rio de Janeiro, aos 14 anos, empregando-se como acendedor de lampiões a gás da Light, e depois alternando a vadiagem e a venda de sambas com os mais diversos trabalhos, tendo sido preso várias vezes. Fazia sambas "de minuto" nas mesas de botequim. Moreira da Silva, o rei do samba de breque, em entrevista à autora de "Acertei no Milhar" confirma a produção do grande sambista em plena boemía: Wilson Batista era capaz de "tirar" um samba em mesa de botequim e em seguida presentear alguém que por ele se entusiasmasse. Sua visão feminina inserida no universo malandro é o da mulher malandra, que abandona o lar em busca de orgia, enquanto o malandro, regenerado pelo amor, se vê traído e transformado em otário.

OH! SEU OSCAR
(Ataulfo Alves/Wilson Batista)

Cheguei cansado do trabalho
Logo a vizinha me chamou:
Oh! Seu Oscar

Tá fazendo meia hora

Que a sua mulher foi embora
E um bilhete deixou

Meu Deus, que horror

O bilhete assim dizia:

Não posso mais, eu quero é viver na orgia!

Fiz tudo para ver seu bem-estar

Até no cais do porto eu fui parar

Martirizando o meu corpo noite e dia
Mas tudo em vão: ela é da orgia...É parei !


Alguns sambas se referem às "mulheres da orgia", levando vida desregrada, transitando na rua sem pouso fixo. Na letra desta música aparece o real significado (na visão malandra do mundo) do trabalho braçal, de muito cansaço e muita frustração. Trabalho e casamento não trazem felicidade, e por isso seu Oscar percebe que seu esforço foi inútil, pois de tanto trabalhar acabou perdendo a mulher. Daí o breque final: "é...parei". A mulher da boemia gosta de vadiar e recusa o papel que lhe procura impor a ordem social, de esposa e mãe, despreza as comodidades da vida doméstica, abandona o lar e se integra à festa coletiva.

VAI VADIAR
(Monarco/Alcino Correa)

Eu quis te dar um grande amor
Mas você não se acostumou
À vida de um lar
O que você quer é vadiar
Vai vadiar(...)

Agora, não precisa se preocupar

Se passares da hora

Eu não vou mais te buscar

Não vou mais pedir
Nem tampouco implorar

Você tem a mania de ir pra orgia

Só quer vadiar

Você vai pra folia, se entrar numa fria

Não vem me culpar (vai vadiar)

Quem gosta da orgia

Da noite pro dia não pode mudar

Vive outra fantasia

Não vai se acostumar

Eu errei, quando tentei te dar um lar
Você gosta do sereno

E meu mudo é pequeno

Pra lhe segurar
Vai procurar alegria

Fazer moradia da luz do luar (vai vadiar)

Vai vadiar...


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Quem é Luiz Carlos Manhães?


Professor universitário da UFF, Luiz Carlos Manhães realiza um curso regular: "redes educativas na boemia musical". Sugerindo o nome da coluna como: "boemia musical" ou "Os Boêmios", em homenagem a Anacleto de Medeiros, autor da música gravada pelo Cordão do Boitatá. Entretanto, a coluna ficou como Dr. Boêmia em homenagem ao doutor especializado em boêmia. Viva!

2 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom professor! Apesar de já ter ouvido muito desse texto nas aulas (e das músicas) nas aulas!
Só consegui entrar no blog hoje! hehehehe... adorei a foto!

Guilherme disse...

Legal Manhães, saberes produzidos em lugares subalternizados! Viva a rebeldia, viva a boemia.

Abraços

Guilherme